A Ace foi fundada em 21 de setembro de 2007. Mesmo nos primeiros passos desta infância já conquistou estas vitórias:


-Concurso Literário Eduardo Campos de Crônicas e Contos, com a participação de 120 autores e entrega do prêmio para os vinte autores com os melhores textos literários.

-Edição do livro Antologia de Contos e Crônicas Eduardo Campos, do referido concurso.

-Lançamento e distribuição do jornal FormAção Literária e do folheto didático Novo Acordo Ortográfico

-Instalação da sede da Ace no Sigrace, para funcionamento da secretária executiva, e auditório climatizado.

-Criação do site www.escritores ace.com.br, com a loja virtual do escritor.

-Participação na 9ª Bienal Internacional do Livro,

-Nomeação de dois associados para o Conselho Estadual de Cultura (CE) e participação efetiva nos Fóruns de Cultura Cearense, entre eles o Flec.

-Implantação da campanha Seus cupons velem livros, com o objetivo de divulgar a literatura cearense através dos escritores da Ace.

-Criação da Coordenação Literária, da Assessoria Literária para os escritores cearenses.

-Criação da Diretoria de Artes Cênicas e do Concurso Literário Rachel de Queiroz de Conto e Poesia.

-No último sábado do mês realizamos um evento cultural- palestra, lançamento de livro, sorteio de livros.


DIRETORIA DA ACE PARA 2012/2013

Presidente de Honra: Haroldo Felinto

Presidente Emérito: Francisco de Assis Almeida Filho

Presidente: Francisco de Assis Clementino Ferreira- Tizim

Vice-presidente: Linda Lemos

1º Vice-presidente: Francisco Bernivaldo Carneiro

1º Secretária: Sonia Nogueira

2º Secretário: Gilson Pontes

1º Tesoureiro: Antônio Paiva Rodrigues

2º Tesoureiro: Abmael Ferreira Martins

Diretor de Eventos: Silas Falcão

Diretores adjuntos de eventos: Eudismar Mendes, Romenik Queiroz, Lúcia Marques, Francisco Diniz, Márcia Lio Magalhães.

Diretor de Artes Cênicas: Aiace Mota

Diretor cultural: Cândido B. C. Neto

Diretora cultural adjunta: Fátima Lemos

Cerimonialista: Nicodemos Napoleão

Coordenador de Literatura: Lucarocas

Coordenador adjunto de Literatura: Ednardo Gadelha, Carlos Roberto Vazconcelos e Ana Neo.

Secretaria de Comunicação e Divulgaçã: José Onofre Lourenço Alves

Secretário Adjuntos: Geraldo Amâncio Pereira, Fernando Paixão, Pedro Cadeira de Araújo


Conselho Consultivo

Presidente: Francisco Muniz Taboza

Vice-presidente: Domingos Pascoal de Melo

1º vice presidente: Elson Damasceno.

Membros Efetivos: D. Edmilson Cruz, Juarez Leitão, Ubiratan Diniz Aguiar, José Moacir Gadelha de Lima, José Rodrigues, João Bosco Barbosa Martins, Pe. Raimundo Frota.

Conselho Fiscal

Presidente: Affonso Taboza

Membros Efetivos: Jeovar Mendes, Rejane Costa Barros, Girão Damasceno, Cícero Modesto.

15 de março de 2012







SEM PREFÁCIO


Após o enterro de uma conhecida, distraidamente ela percorre os jazigos lendo as lápides. De repente, gritos de desesperos esmaecem o pôr do sol. Era o nome do seu filho que ela não via há dez anos.


Silas Falcão

26 de janeiro de 2011



Chuvantiga


Seria uma crônica sobre a chuva? Mais uma, dentre tantas, não fosse o fato de que, ao entranhar a lembrança no pensamento, senti chover-me no peito a chuvantiga. A quedar-me assim, comecei:

Numa das ruas do Monte Castelo, seguia um barquinho de papel a correr-lhe pelas águas frias das coxias. Sem pressa, sem pressa, chuá, chuá, imaginava: todas as aventuras do mundo cabiam naquele barco a desmanchar-se lentamente enquanto vaguejante por sobre um céu baço que parecia, na meninice, ser tão grande.

Nas calçadas, buscando bicas, outros meninos e meninas saltavam felizes a tiritar, braços cruzados ao peito, inda livre, crentes na simplicidade de uma vida a viver ainda distante e muita.

À praça redonda, as peladas nas areias corriam entre pernas ligeiras. Os menores piscinavam no antigo chafariz coberto em mosaicos vermelhos que nem vi crescer, assim como aquelas crianças.

Em volta, pretos guarda-chuvas cumprimentavam-se com bons-dias domingosos; o peixeiro a cantar para as freguesas aos portões; encimando os muros baixos, verdes em limbos, as buganvílias, afirmando um vai-e-vem, dançavam; os cães a ladrar o estranhamento; as águas cortinavam, de cores, arco-íris na varanda; as empregadas corriam a desroupar o varal: “Chega, menina!”; o cheirinho de terra molhada entupia as narinas quando os respingos frios — vinham das venezianas do quarto — jaziam no travesseiro; o tactac repenicado no telhado acompanhava o grito do vizinho no alto do muro do quintal; o quintal avermelhecido em acerolas.

Era manhã e na sala inda escura o café esperava — passado no pano —, com leite, o pão francês quentinho e a manteiga de lata.

O pai, a mãe, os irmãos: nunca a mesa fora tão pequena.

Chovi com a chuva a tarde que ribombava.

“Mundo, mundo, vasto mundo”... Ah, se eu não me chamasse Raymundo, como vento gemeria, não em prosa, mas em poesia, todo o vivido retrato que, só no escuro deste quarto, a rasgar os céus azula-me o clarão, pela janela distraída do nublado coração.

Coluna quinzenal do Vida & Arte de O POVO: Raymundo Netto.

22 de outubro de 2010




Enigmas paralelos
Janaura Tavares

Diurno ou noturno,
Viandantes mistérios
Espreito no céu.
Há momentos que não sei
Estar vendo óvnis
Ou o fogo-de-santelmo.
Sonoros sutis,
Pairam no ar,
Sobre as cúpulas, sobre os picos,
Aterrissam no solo,
Nas águas, crípticos.
Às vezes, pacíficos,
Às vezes, sinistros.



30 de setembro de 2010



PRELÚDIOS POÉTICOS: ROMANTISMO E REGIONALISMO

Sânzio de Azevedo
Ministrando aulas no Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará-UFC ou escrevendo em jornais e revistas de nossa terra, há mais de trinta anos tenho lutado contra uma lenda que teima em vir à tona, vez por outra. Essa lenda é a de que Juvenal Galeno só começou a fazer poesia de caráter popular depois de um conselho que recebera de Gonçalves Dias, que estivera no Ceará em 1859.

Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde), em livro cuja primeira edição é de 1928, depois de afirmar que a atividade literária no Ceará começou exatamente “com a chegada de Gonçalves Dias, refere-se aos Prelúdios poéticos, publicados por Juvenal Galeno no Rio, em 1856. E completa: O estreante de 20 anos procurou naturalmente o grande cantor das selvas e dos índios. E este aconselhou ao poeta imberbe que se deixasse de versos acadêmicos e que procurasse no povo e na terra a matéria poética dos seus versos.[1]

É o caso de perguntar: se os poemas do primeiro livro do autor cearense nada tinham da musa do povo, em que Gonçalves Dias se teria fundamentado para dar esse conselho?

O pior é que um grande escritor cearense, nada menos que Antônio Sales, afirmou, num livro do final dos anos trinta, após falar do Romantismo: Foi esse um áureo período do pensamento brasileiro. Juvenal Galeno, obscuro e mal aclimado ainda, entrou como pôde no torvelinho, e aos vintes anos (1856) publicava os seus “Prelúdios Poéticos”. Suponho nada terem de comum esses versos com o gênero a que Juvenal se consagrou depois, tornando-se inimitável. Tenho mesmo motivos para afirmar que os “Prelúdios” se cingiam muito de perto a modelos que não eram, como para uma grande parte dos poetas de então, Lamartine ou Byron.[2]

Note-se que o autor de Aves de arribação demonstra claramente não ter à mão o livro de Galeno, usando expressões como “Suponho” ou “Tenho mesmo motivos”. Infelizmente, durante muitos anos os Prelúdios poéticos, devido à sua raridade, eram inacessíveis, e com base principalmente na autoridade de Antônio Sales cheguei a acreditar fossem ainda neoclássicos os primeiros versos do poeta, não obstante sua convivência, na então Capital do Império, com Machado de Assis, Quintino Bocaiúva, Joaquim Manuel de Macedo e outros vultos do Romantismo brasileiro.

Foi então que um amigo, o saudoso bibliófilo cearense José Bonifácio Câmara, forneceu-me cópia do livro, em cuja folha de rosto se lê: “PRELÚDIOS POÉTICOS / de / Juvenal Galleno da Costa Silva / Natural do Ceará / (vinheta com uma lira enramada) / Rio de Janeiro / Typ. Americana de José Soares de Pinho / Rua da Alfândega n. 210 / 1856.”

Folheando esse livro, deparei-me logo com a presença avassaladora do Romantismo, não somente na dicção do poeta cearense, mas também nas epígrafes de Victor Hugo, Alfred de Musset, Lamartine, Alexandre Herculano, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Gonçalves de Magalhães e outros.

Os metros usados são típicos da corrente, como o decassílabo, em “Numa noite de luar”:

Ah, vem querida virgem, vem meu anjo;
Tão medrosa não fujas, cara amante!
Contempla o vasto mar, contempla a lua,
Ouve a onda gemer pouco distante.

Como o verso de sete sílabas, ou redondilho maior, em “O Cravo desprezado”:

Em teu raminho verdoso
Eras belo a vegetar!
Tão garboso, pelos ares
Doce aroma a espalhar.

Não falta o eneassílabo, verso de nove sílabas, em seu andamento anapéstico. É o caso de “A Enjeitada”:

Eu a vi!... Triste pranto banhava
Sua face tão linda e corada!...
Era jovem e já desditosa,
Era, oh Deus! uma triste enjeitada!...

Nem o hendecassílabo iâmbico-anapéstico, o mesmo que abre o poema “I-Juca-Pirama” de Gonçalves Dias. No livro do poeta cearense, temo-lo em “Cismar”:

E a lua vagava nos Céus infinitos,
Tão bela qual virgem sozinha pensando!
E eu era mui triste no adro do Templo
Na laje marmórea, na vida cismando!

É genuinamente romântico o poeta que, em versos cheios de amargura, derrama-se na confissão desses decassílabos do poema “Sou triste”:

Sou triste como a linfa suspirosa
Entre a selva de noite serpeando;
Sou triste como a rosa murchecida,
Que a fera ventania vai levando...

O subjetivismo, a tristeza explícita, as comparações, o vocabulário, a adjetivação, tudo nesses versos remete para a escola de Musset e Lamartine.

É verdade que, às vezes, ressumam leves reminiscências neoclássicas (o que é compreensível num leitor de Gonçalves de Magalhães), como neste trecho, em tetrassílabos (de quatro sílabas), de “Adeus, Aratanha!”:

Triste suspiro
Solto do peito,
Que da saudade
Jaz tão desfeito!

Mas diga-se a verdade: de neoclássico há aí unicamente o metro. Esse suspiro saudoso é característico da escola romântica, dentro da qual nasceu literariamente o jovem poeta.
Entretanto, não foi apenas Romantismo que encontrei nos versos desse livro: lá estão, vivas, se bem que ainda não em sua melhor forma, as notas regionalistas precursoras da poesia de raiz popular que haveria de consagrar Juvenal Galeno.

E antes que alguém afirme que os poemas do livro são ainda bisonhos, bem longe da arte de “A Jangada” ou do “Cajueiro pequenino”, lembro que em literatura há dois tipos de importância, a estética e a histórica. Os Prelúdios poéticos têm valor histórico porque abrigam os primeiros textos de caráter romântico e regionalista do poeta, inspirados pela musa popular.

Distante de sua terra natal, espraiava-se o bardo, em junho de 1856, nos heptassílabos de “A Noite de S. João”:

Em minha terra a estas horas
Eu sorria alegremente,
Tirava sortes co’as moças,
E brincava tão contente!
Era ledo e folgazão
Em noite de S. João!
Pulava destro e sorrindo
Por cima duma fogueira,
Aplaudido sendo sempre
Por menina feiticeira!
Brincava com tantas belas,
Por S. João ― compadre ― delas!

Era sem dúvida o prenúncio daquele poeta observador que, embora romântico, anotava de maneira mais ou menos realista todas as facetas do viver do nosso povo. No mesmo poema, há este trecho que revela a crença das jovens casadoiras:

Um sorriso de menina,
Que tirou sorte bonita...
Um suspiro doutra moça,
Que na sorte lê: ― desdita!...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Uma vai atrás da porta
Co’a boquinha cheia d’água,
Ouve um nome... é do seu noivo,
Tem prazer ou sente mágoa!

Também o homem do mar, que haveria de merecer-lhe versos duradouros, está presente nas rimas do estreante, como em “A Canção do jangadeiro”, na qual diz, entre outras coisas:

Rema, rema, jangadeiro,
Vai tua esposa abraçar,
Ver os tão tristes filhinhos,
Que já choram de esperar!
Rema, rema, jangadeiro,
Pobrezinho aventureiro!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Tua esposa, cuidadosa,
Teus vestidos a enxugar,
Quanto é terna e desvelada,
Quanto é firme o seu amar!
Rema, rema, jangadeiro,

“A Canção do jangadeiro”, como vários outros poemas do livro, foi escrita no Ceará, em 1855. Desse mesmo ano é a “Cantiga do Violeiro”, que traz esta indicação entre parênteses: “poesia popular”, o que é significativo. É esse poema formado de versos de sete e de quatro sílabas:

Nas cordas desta viola
Quando toco e vou cantando,
Meu coração contristado
Em prazeres vai nadando.
A vida passo
Assim cantando,
Assim tocando
Numa função!
D’amor o laço
Já me prendeu!
Já se rendeu
Meu coração...

Não é fora de propósito imaginar que Gonçalves Dias, ao receber do então jovem poeta um exemplar de seu livro, viu que nele o que havia de mais original eram os poemas de cunho popular, daí, sim, o conselho para que o autor desenvolvesse essa faceta de sua inspiração.

Os Prelúdios poéticos representam, a meu ver, o marco inaugural, não da literatura cearense (pois sigo a opinião de Dolor Barreira, ao considerar como tal as produções dos Oiteiros, do tempo do governador Sampaio), mas do Romantismo no Ceará, o que não é pouco.

Ao enfrentar pela primeira vez o público ao qual se destinavam seus versos, o jovem poeta se apresentava timidamente, escrevendo com humildade palavras deste teor: “Quando lerdes este livro, lembrai-vos de seu título, da tenra idade de quem o escreveu, e sede indulgentes.”[3]

Diante de tudo que aqui foi exposto, não há razão para que se repita a afirmação infundada de que os Prelúdios poéticos nada tinham de romântico ou de regional.

Juvenal Galeno, já em seu livro de estreia, fazia palpitar, ainda que timidamente em seus versos de principiante, a alma do povo cearense, da qual ele seria, nove anos mais tarde, o legítimo intérprete, nas Lendas e canções populares.

Fonte: http://raymundo-netto.blogspot.com/

24 de setembro de 2010


O homem, o sal e o velho

Carlos Mourão

Trancou a porta, dando duas voltas na fechadura e tentando uma terceira que nunca viria, e saiu para a rua. Colocou as chaves no bolso, conferiu se havia pegue sua carteira, seu cartão e bateu a mão no bolso esquerdo da blusa branca para ver se o cigarro estava mesmo lá.

Sim, estava, porém no final. Nota mental imediata: comprar cigarros na banca de revistas. Não esquecer também das balinhas de menta, para se sentir limpo. Apressou o passo para chegar à banca antes do ônibus passar.

Na banca, havia um rapaz de calça jeans rasgada, blusa preta, piercings, com fones no ouvido, lendo uma revista sobre yoga e budismo. Em seu colo, uma revista aberta com fotos de tatuagens, mostrando uma mão de Fátima e o Om.

Ao seu lado esquerdo, uma moça com uma saia indiana dentro de uma bolsa reciclável, além do shampoo e de uma escova de cabelos. Comprava um chiclete de menta, uma coca-cola e um biscoito de chocolate. Jogava tudo na bolsa, segurava a lata e catava as moedas enquanto falava ao celular avisando que iria demorar um pouco, mas chegaria em 23 minutos. Assim mesmo, bem precisa, mas não sabia o ônibus que iria pegar.

O dono da banca disse qual o ônibus pegar, olhando para os seus seios e umedecendo os lábios. Tirou a caneta de cima do balcão de vidro, anotou num pedaço de papel o número dos coletivos que ela poderia pegar e, no seu verso, um número qualquer de telefone. Possivelmente o dele, mas ela não percebeu ou fingiu não perceber.

Senhoras caminhavam ao redor da praça em que ficava a parada do ônibus. Usavam bonés, blusas grandes e com algumas propagandas, além dos terços nas mãos direitas. Seus olhares eram curiosos, conservadores e indiscretamente discretos quando falavam dos jovens que iam para suas aulas ou vinham de algum bar.

Enquanto comprava seu cigarro, olhou para o relógio de um homem branco e careca (por opção), e viu que eram quase sete horas da manhã. Lembrou que era quinta-feira, véspera da véspera do fim de semana. Lembrava também que tinha muitas pendências e que queria viajar no fim de semana, mas não tinha dinheiro, pois era dia 21, sinônimo de resto de salário e que devia comer menos de quatrocentos gramas no self service perto do trabalho para não faltar dinheiro.

Do outro lado da rua vinha uma travesti arrasadíssima, maquiagem borrada e praguejando do salto alto. O careca (por opção) olha com desprezo e desejo para a mulher/homem, um olhar com vontade de matar a moça para matar seu desejo por ela.

Olhou novamente para o tal do careca e procurou a suástica para saber mesmo se era um skinhead. Devia estar por baixo da blusa, certamente. Pagou o cigarro e olhou para o final da rua na expectativa do ônibus chegar logo.

O rapaz que lia sobre yoga e budismo comprou a revista e tirou uma foto pelo seu celular do Om e da mão de Fátima. Em seguida, voltou a colocar os fones no ouvido e atravessou a rua, caminhando atrás de um senhor que carregava uma sacola com pães e um pacote de sal.

A moça sentou na parada e releu o papel para conferir qual ônibus pegaria. Tomou o refrigerante, comeu um biscoito e pediu um cigarro. Na palma da sua mão estava tatuada uma mão de Fátima. Tragava à medida que amassava a lata, olhando ao redor para encontrar um lixeiro, mas teve que colocar a lata na sua bolsa, pois o ônibus já estava chegando.

Deram sinal, jogaram os cigarros no chão e entraram. Tentavam encaixar seus corpos naquela proximidade tão distante, evitando o toque. Pela janela, ele percebeu que o careca (por opção) acenava discretamente para a travesti, pedindo para ela ir logo, talvez para a casa dele ou deles.
Ficou observando os dois dobrarem a esquina enquanto esperava o sinal abrir e viu um carinho dela no pescoço do careca. As senhoras, que tinham parado de caminhar para saber se os comentários eram verdade, entreolharam-se, benzeram-se três vezes e saíram falando levando a mão à boca e olhando para os lados.

Um casal chegou à parada, sentaram e logo a carona deles chegou como sempre extremamente pontual. Deram sorrisos, entraram e se enfileiram aos outros carros, motos, bicicletas, ônibus, topics e pessoas transitando.

O sinal abriu e o senhor que chegava com os pães e sal fechava o cadeado do portão. Jogou um punhado de sal na entrada da casa, puxou uma cadeira e sentou-se na varanda. Arrancou o bico do pão e mastigou calmamente, opondo-se à velocidade dos pneus e freadas no asfalto de mais uma quinta-feira.

22 de setembro de 2010


"Aíla percorre um longo caminho. Analisa os contos de Mistérios, de Lygia Fagundes Telles, valendo-se de textos de outros contistas dos séculos XIX e XX, e de todo o referencial teórico disponível. Vai à Antiguidade e Idade Média em busca das primeiras manifestações.
"Lourdinha Leite Barbosa, Professora e Escritora"Seu enfoque propõe a revisão da teoria do gênero Fantástico, cujos cânones mostram-se ultrapassados quando se constata sua realização em textos literários dos séculos XIX e XX, como se poderá comprovar com a leitura dessa obra." Francisco Bedê, Escritor
"Meu primeiro contato com Lygia foi com o ´Ciranda de Pedra´, seu romance de estreia, que traz uma abordagem psicológica dos personagens. Depois foi que entrei em contato com as narrativas curtas, e ´Mistérios´ me chamou especial atenção. Como havia estudado o gênero fantástico, interessou-me aplicar sua teoria a estes contos. Foi aí que percebi que todo fantástico é um mistério, mas nem todo mistério é fantástico.” Aíla Sampaio

21 de setembro de 2010


FEITO O CONDOR


Voei tão alto,
Voei feito o condor.
Planei com esmero a imensidão do azul
E me senti livre das amarras
Da vida terrena.
Sobrevoei os alcantis mais íngremes
E de lá, ecoei meu grito
Num rasgo indefinido, imensurável.
Voei tão alto,
Voei feito condor.
Fui mais além, atingi outras dimensões.
Evolui a alma.
Depois, ao retornar do vôo,
Rejeitar, duvidar, me fazem companhia,
Deixando-me intuir.
Aqui, quase nada se explica.
Muitas vezes, erroneamente se explica.
Fico assim, a fazer reticências.
Não sei decerto, talvez o inesperado colidiu comigo,
Precipitando-me pela atmosfera,
Restando apenas esta centelha aqui prisioneira
À espera de um vôo rasante,
De volta para o infinito.


Janaura Tavares