Ana Miranda
Saramago e o Ceará
Tive alguns encontros com Pilar e Saramago, sempre nos abraçávamos com carinho e, além dos livros, das boas conversas, guardo deles preciosas fotos e cartas. Também um gesto em que ele me transmitiu uma simbólica herança literária, e que fica como despedida. Sempre percebi nossa afinidade criativa, pertencíamos a uma mesma família literária. Por Pilar tenho a gratidão nascida de suas delicadas palavras a meu respeito, num dos Cadernos de Lanzarote. Acompanhei a brilhante trajetória de Saramago, esperava cada novo livro seu, sabia de suas atividades e opiniões políticas, os sofrimentos, seu zelo por seres humanos a sofrer tantos crimes, loucuras, omissões, num mundo convulso e injusto. Não conhecia, porém, a sua origem, Saramago pouco falava dos antepassados, dizia que somos filhos apenas de nossas obras. As memórias que valem, dizia ele, são as que pertencem a todos. “Só o passado coletivo é exultante”. Mas encontrei nos lindíssimos livros A bagagem do viajante e Viagem a Portugal algumas lembranças de sua infância e de seus antepassados.
Ele dizia que seu nome era o de uma erva. Vem do árabe sarmaq, esclarece o dicionário, e chegou a terras espanholas corrompido em jaramago, depois tomando forma portuguesa. É uma planta silvestre, de folhas denteadas, em cujos ramos brotam florzinhas alvas e pequenos frutos como cilindros estriados. E José, o nome do carpinteiro pai de Jesus, significa Deus acrescenta. O nome mais singelo, seguido por um nome de planta selvagem. Ervas são resistentes e nascem sem que ninguém precise plantar, regar, adubar ou podar, só os simples as colhem, com pureza, nas mãos distraídas, e elas logo murcham, sabem viver somente da seiva da terra. São pisoteadas pelos cascos dos cavalos, pelos pés dos lavradores, arrancadas no preparo da terra, mas renascem onde querem, livres, num pequeno milagre vegetal.
Foi como uma erva das campinas que Saramago nasceu, na aldeia de Azinhaga, entre gente rude que levava a vida no recesso da natureza. Ali o menino escutava estórias de um bisavô alto, magro e escuro, rosto de pedra (as pedras do rosto de Saramago eram suavizadas e clareadas pelo legado da avó), sabedor dos “segredos dos dias e das noites, e da negra fascinação que exercia nas mulheres o seu mistério de homem do outro lado do mundo”, a distante África do Norte, de montanhas frias e ardentes; pastor, ou salteador, não se sabe. Coberto pelo manto de lã com capuz usado pelos árabes chegara a Portugal para guardar terras encharcadas às margens do rio, e ali matou um homem “como quem arranca uma silva”. Vivia longe da aldeia, nas matas, guardado por dois cães ferozes. Essa romântica fonte berbere é a origem mais distante a que o escritor se aventura.
Relembra também um avô, de quem teria herdado os ombros magros, um guardador de porcos que, ao nascer, havia sido posto na roda dos enjeitados, filho de sabe-se lá quem, e talvez por isso mesmo crescera secreto, silencioso. Um dia atraiu contra si o ódio da aldeia, pois dele se enamorou a mais linda rapariga que ali morava. Teve de passar a noite do casamento à porta da casa, “ao relento, de pau ferrado sobre os joelhos, à espera dos rivais ciosos que tinham jurado apedrejar-lhe o telhado”, e só quando a lua deitou, foi abraçar aquela mulher maravilhosamente bela. Saramago se diz tão perto desse avô que estende a mão e toca sua lembrança carnal.
O menino de faces pálidas, que sonhava um dia ser maquinista de caminhos de ferro, ia olhar os barcos navegando em canais, saltava pelos ramos dos salgueiros quase a encostar na superfície do charco, e subia até a fímbria das árvores. Tomava banho no rio de águas cobertas pelo mateiro suspenso, evitava os azulejos azuis e amarelos da ermida que tanto medo lhe causava, pelo acervo de estórias que uns acreditavam serem apenas invenção de bêbados, mas ele preferia o temor. Menino de leituras poucas e marcantes, conta que os livros em sua casa ficavam guardados numa gaveta, embrulhados em papel de seda, entregues com muitas recomendações. A mãe e o pai, com quem dormia no mesmo quarto, ele nos apresenta pela descrição de uma fotografia, o casal com ar de gravidade solene, a mãe tem uma flor na mão, e o pai, a mão sobre o seu ombro, parecendo uma asa. “Nada disto tem importância, a não ser para mim”, ele diz. Mas essa origem, essas cartas da memória escritas com os olhos fechados, contendo tantos significados sofridos e poéticos, tem silenciosos apelos que ressoam no íntimo de nós todos, seus leitores.
Fonte: Jornal O povo - Coluna Ana Miranda
Em 25/06/2010
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