Contos de liberdade
O escritor Ronaldo Correia de Brito lança nesta quinta-feira, 16, em Fortaleza, o quarto livro de contos, Retratos Imorais, e faz conferência sobre criação literária.
Duas mulheres em preto e branco é o conto que abre a coletânea que compõe Retratos Imorais. Amigas desde o tempo em que eram estudantes de medicina em Recife, as duas encontram-se, agora, trancadas num quarto, onde uma planeja, com detalhes, a morte da outra, enquanto refaz as pegadas do caminho trilhado por elas, anos a fio. Quando o leitor imagina que tudo se encaminha para o fim, eis que o narrador dá outro rumo à história.
Uma mistura que inclui uma boa dose de surpresa e uma pitada de incômodo, causados pela exposição de personagens múltiplos, que carregam consigo uma memória que quer libertar-se a todo custo, está presente nos 22 contos divididos em retratos: dispersos, de mães, de homens.
Ronaldo Correia de Brito, médico e escritor, diz que arrumou os textos do novo livro como um curador monta uma exposição de obras de arte. Experiência própria. Entre a medicina e a literatura, Ronaldo faz teatro e curadoria de exposições e só não faz cinema porque tem que dar expediente em dois empregos. Na década de 1970, fez um documentário (Cavaleiro Reisado) e dirigiu um longa para TV Cultura (Lua Cambará).
Nada impede, porém, que seus textos tenham uma velocidade tal que se assemelham a imagens em movimento. Seja quando imagina acertos de contas de uma vida inteira, seja quando cria um novo Jó às voltas com perguntas que Deus teima em não responder, como é o caso do conto que dá origem ao nome do livro.
Retratos Imorais é uma espécie de livro de liberdade, segundo conta o autor. Ele diz que depois de Galileia rompeu com a “mordaça do universo sertanejo” e chegou às cidades. “Agora estou mais solto para escrever o que bem quiser e transitar por onde quiser”, afirma. Até mesmo deixar de lado o sertão, tema que Ronaldo deu vida nova nos livros anteriores – As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens - e que reconstruiu com maestria no primeiro romance, Galileia, com o qual arrebatou o prêmio São Paulo de Literatura, no ano passado.
Em entrevista ao O POVO, Ronaldo Correia de Brito fala sobre o novo livro e revela como todas as artes o levam à escrita que ele escreve com “os olhos”.
O POVO - Retrato é algo que fica congelado. A literatura, pelo contrário, se move no tempo. Como você junta retrato e literatura?
Ronaldo Correia de Brito – Sempre faço curadorias para exposições de pintores, aquarelistas, gravadores e escolho as obras de arte que vou expor a partir de um conceito. Quando expus o gravador Gilvan Samico, o conceito da mostra era a exatidão. Usei essa mesma técnica para selecionar os 22 contos desse novo livro. Todos eles reproduzem imagens, retratos variados, mas sempre em movimento.
OP - Recife é o cenário comum de muitos dos retratos que você registra no seu livro. Como o lugar dita a ordem das histórias que você conta?
Ronaldo – Acho que desde o romance Galileia rompi com a mordaça do universo sertanejo e cheguei às cidades, uma trajetória que também é a de minha vida. Nesse novo livro, a paisagem predominante é o Recife, cidade onde moro há 41 anos. Se os meus personagens em paisagens de sertão já eram neuroticamente urbanos, agora estou mais solto para escrever o que bem quiser e transitar por onde quiser. É mais fácil refletir sobre questões atuais do mundo, na perspectiva de uma cidade grande e complexa como o Recife, do que preso a uma paisagem cristalizada, que nem mais existe.
OP - O cinema e a fotografia são referências constantes nos seus contos, assim como a psicanálise e o teatro. Como você observa essas referências criadas e recriadas?
Ronaldo – Às vezes, esqueço que estou escrevendo um romance ou conto e penso num roteiro de um curta-metragem, como na narrativa Homem Sapo. Misturo as linguagens e por isso meus contos são impregnados de teatro, cinema, catálogos de exposições, imagens, muitas imagens. Escrevo com os olhos. Quanto à psicanálise, não existe literatura que não seja psicanalisada, desde Freud, ou desde Dostoievski.
OP - Muitos dos contos haviam sido escritos há anos e você os refez ou os atualizou. Como se deu esse reencontro com o texto?
Ronaldo – Reescrever é bem pior do que escrever. Dá mais trabalho, dói revisitar textos guardados. Reescrever é escrever duas vezes. No conto Romeiros com sacos plásticos, bem antigo, narro a trajetória de uma romeira de Juazeiro do Norte, assunto que conheço e ao qual sempre volto. Vivi no Crato e no Juazeiro e fiz algumas romarias viajando em pau de arara. A primeira história se limitava a uma narrativa linear, sem muitas intromissões do autor. Senti necessidade, depois de 32 anos, de trazer a ação para um novo contexto, um Juazeiro do Norte desfigurado por sacos plásticos e motos. Um fotógrafo francês, Patrick Bogner, teve a mesma impressão que eu. Nas fotos dele, os romeiros estão sempre com sacos plásticos nas mãos. O meu reencontro com os textos se dá num presente desfigurado, não sei se melhor ou pior do que eu vira antes.
OP - O conto Toyotas azuis e vermelhas traz consigo um discurso metaliterário que compreende a escrita, a morte, o autor. Como você, como autor, lida com a ideia de que a escrita mata o próprio autor?
Ronaldo – Escrevemos para esquecer, para nos livrarmos da memória. Quando nos desfazemos de uma narrativa, o que acontece depois que publicamos um livro, sentimo-nos aplacados, em parte aliviados das lembranças que nos alucinavam e fustigavam. Além disso, os textos deixam de ser nossos, não nos pertencem mais. Só o leitor pode recriá-los com sua leitura.
OP - Ainda sobre esse conto, o narrador em algum momento fala: “Todas as espécies merecem sobreviver. Os escritores também”. Ronaldo – Nem lembrava dessa passagem. Você tem certeza de que a escrevi? Nunca retorno aos meus livros. Uma vez, um leitor me mandou um livro todo anotado, para o meu autógrafo. Senti verdadeiro constrangimento em abri-lo, pois já não me pertencia, era de outra pessoa, que o estava reescrevendo. Como já falei anteriormente, os escritores sobrevivem apenas através dos leitores. Nós merecemos viver, sendo lidos.
OP - Como você lê Borges? Espiando a si próprio, tal qual o personagem do conto Homem borgiano espreitando o lobo?
Ronaldo – Borges, depois da Bíblia, foi a melhor descoberta literária de minha vida. Talvez Borges seja um narrador bíblico, infinito, e por isso eu goste tanto dele. Acho que me filio a essa tradição de narradores bíblicos, contidos e ao mesmo tempo exaltados, e olho Borges como o escritor que eu gostaria de ser. Começamos a escrever assim, desejando ser como alguém que admiramos. Um dia descobrimos nossa voz narrativa, o ritmo próprio. E aí nos tornamos também escritores.
OP - Eu o ouvi falar sobre o processo de criação do conto Homem folheia álbum de retratos imorais. No final, você disse que nunca sabe como a história vai se desenrolar. Como você lida com esse mistério?
Ronaldo – É verdade, nunca sei mesmo. Nesse conto que você refere, passei anos pensando na história, mas não descobria o ritmo adequado. Emperrei, não saía do lugar. Já escrevera uma crônica sobre o personagem Claudiney Silva, narrador do conto, para a revista Continente. Quando li a história de um judeu no gueto de Varsóvia, encontrei o fio narrativo que buscava. Escrever é essa loucura, o mesmo que atravessar um rio caudaloso. Pensamos em sair num ponto e chegamos a lugar bem diferente.
OP - A partir do conto Homem buscando a cura, quem tem mais poder de curar: a medicina ou a literatura? Ronaldo – Eu não acredito em cura definitiva. Há um ponto de equilíbrio dos sintomas em que é possível tocar a vida. Ou amar e trabalhar, como refere Freud. Tanto a medicina como a literatura pode fazer bem. Embora eu prefira a literatura na perspectiva de Kafka, como causadora de transtornos. A doença também é um transtorno que a medicina busca equilibrar. Então, vamos usar as duas panaceias: literatura e medicina.
RETRATOS IMORAIS - Livro que Ronaldo Correia de Brito lança quinta-feira, 16, às 19h30min e faz conferência: Do conto ao romance: uma conversa sobre o ato de escrever. Na sede do Iprede: rua Professor Carlos Lobo, 15, Cidade dos Funcionários.
Outras informações: 3218 4000.
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